Indubitavelmente um dos fatores que caracterizam de modo mais decisivo os dias atuais são as novas relações do homem no espaço e no tempo. Essas transformações são marcadas especialmente pela ruptura da concepção do tempo como uns transcorrer com passado, presente e futuro, ou seja, como história que tem um fio condutor que liga o hoje ao ontem ao projeto para o amanhã.
Para compreendermos a difícil relação do homem contemporâneo com o tempo apresentamos dois conceitos desenvolvidos por Fraser (1991) em seu acurado estudo sobre o tempo.
O primeiro se refere ao que se pode chamar do tempo especificamente humano e que o autor define como a nootemporalidade. É a concepção de que “os seres humanos são diversos de todas as outras espécies porque são capazes de compreender o mundo nos termos de um futuro e de um passado distantes, e não somente nos termos das impressões sensoriais do presente.”[1] Em outras palavras é o tempo visto como um percurso que o homem faz rumo a um objetivo que é seu mas que é maior que ele mesmo e do qual cada um contribui a seu modo. E no seu transcorrer a consciência deve estar entrelaçada com o passado para viver e transformar melhor o presente.
O segundo conceito é chamado de sociotemporalidade. Ele se refere ao modo como um grupo social gere o tempo. É “a socialização do tempo que se exprime na sincronização e na planificação das ações coletivas sem as quais nenhuma sociedade pode existir.”[2] Ou seja, o tempo das pessoas que vivem e trabalham em sociedade bem como de todas as ações coletivas do grupo chamado de “socialização do tempo.” É ainda “a criação e a manutenção dos sistemas de valores que guiam a conduta dos membros de uma sociedade, e que devem a sua autoridade a história e aos projetos do grupo...”[3]
A sociotemporalidade ou o tempo social é marcado pelo presente social. O presente social é o tempo necessário que permite as pessoas de um determinado grupo agirem de comum acordo. Ele é determinado pela comunicação que perpassa os membros do grupo e a sua amplitude depende dos recursos disponíveis para fazer chegar a todos determinada mensagem. Não requer esforço perceber que o presente social da sociedade atual é radicalmente diverso daquele em que para comunicar a morte de um membro da comunidade se usava certo tipo de ritmo do sino.
É preciso fazer notar a importância vital do tempo social para qualquer grupo sem o qual não há uma vida social propriamente dita e muito menos um mínimo de homogeneização necessária para a continuidade do grupo. Quer dizer que “a sociotemporalidade é tanto mais desenvolvida na vida das pessoas que fazem parte de uma sociedade quanto mais essas são em relação. Mais a sociotemporalidade é desenvolvida mais os estilos de vida, os valores e as condutas das pessoas tornam-se homogêneas.”[4]
O que se percebe hoje em dia é que os meios de comunicação modernos se tornaram os agentes principais de socialização. Não é mais como um tempo quando a família, a escola e a igreja eram as instituições que dividiam o bolo das informações que se poderia ter acesso. Na verdade a sociedade midiática rompeu com uma característica fundamental dos processos de socialização típica antes do advento desta: a presença física. Antes cada tipo de informação era veiculada num ambiente especifico e fora dele era muito difícil ter acesso a elas. Em todos os períodos históricos anteriores ter acesso a “dois acontecimentos que acontecem ao mesmo tempo pressupunha um lugar físico em que os indivíduos pudessem experimentar a contemporaneidade. O ‘ao mesmo tempo’ implicava o ‘no mesmo lugar’.”[5] Além disso, esse tipo de situação permitia a separação clara entre classes e faixas etárias. Por exemplo, as crianças não tinham acesso ao mundo das informações dos adultos. Com a ruptura da ligação entre colocação física e situação social, “a mídia eletrônica pode começar a confundir a identidade de grupo precedentemente separada, permitindo aos indivíduos de fugir informativamente aos grupos ancorados a um lugar definido e deixando que os estranhos invadem muitos territórios de grupo sem nem mesmo neles entrar.”[6] Dali é fácil concluir que não muda somente a velocidade com as quais as pessoas podem ter acesso as informações, mas também que seus efeitos são perniciosos para a identidade.
O termo fragmentação é constantemente apresentado nas bibliografias que tratam da pós-modernidade como um dos elementos que a caracterizam. De fato a fragmentação é perceptível no mundo das ciências, passando pela educação e pela política até desembocar na ética. Mas é evidente que a fragmentação do tempo joga nisso tudo um papel decisivo. Não se pode dizer que sejam processos indiferentes no sentido que correm paralelamente, porém se fosse possível imaginar uma sociedade em que as pessoas concebessem o tempo como história, sem dúvida os efeitos das outras não seriam tantos e nem mesmo atingiriam níveis tão elevados.
A fragmentação do tempo no mundo contemporâneo ou se preferirmos a redução do tempo a um simples suceder de presentes insere o sujeito num mundo do qual não se sente em condições de governar sua vida pautada em projetos que se fundamentam em valores. Isso porque cada momento oferece as suas exigências peculiares que não raras vezes estão em contradição com o momento anterior. Além disso, viver o momento significa exaurir-lhe todas as possibilidades sob o ponto de vista do prazer, da emoção e do consumo.
O avanço das tecnologias de informação provocou conseqüências não somente na vida prática das pessoas. Influenciou de maneira decisiva a relação do homem com tempo – passado, presente e futuro – a tal ponto que não consegue mais encontrar nele um sentido muito menos uma linha identitária que lhe confira unidade.
A redução do tempo social devida às diversas possibilidades de interação em tempo real oferecidos pelos meios de comunicação – principalmente internet e televisão – criam a “superabundância de eventos.” Na era da comunicação o sujeito quanto mais for imerso nessa rede mais tem acesso a informações e acontecimentos em todos os cantos do mundo. Essa sobrecarga de mensagens que aparecem simultaneamente não permite que sejam elaboradas. Criam uma verdadeira confusão no indivíduo. Porque, por exemplo, ao mesmo tempo em que chega a notícia de um amigo que morreu, pode estar se comunicando com um outro em outra parte do mundo que conta o sucesso obtido na conclusão da sua vida universitária.
Marc Augè que desenvolve essa idéia do excesso na pós-modernidade afirma que “a dificuldade de pensar o tempo deriva da superabundância de acontecimentos do mundo contemporâneo (...). Da nossa exigência de compreender todo o presente que deriva a nossa dificuldade de dar sentido ao passado próximo.”[7] Ou seja, a pessoa é sufocada com um tal número de informações a serem entendidas que não consegue desprender-se do presente e muito menos compreender e atribuir um sentido a elas bem como a história. O autor estende sua análise do excesso do tempo também para a categoria do tempo. O excesso do espaço “é correlato ao restringimento do planeta (...). Mas, ao mesmo tempo, o mundo se abre a nós.”[8] Esse paradoxo se poderia explicar dizendo que em relação a outras épocas a compreensão de mundo hoje é definida e precisa ( como um espaço finito). Por outro lado a possibilidade de deslocamento real e/ou virtual é praticamente ilimitada. Estima-se que num futuro próximo será possível fazer uma viagem de Londres a Sidnei em aproximadamente três horas. Tudo isso graças ao desenvolvimento do chamado turismo espacial. As naves, para encurtar a distancia, saem da atmosfera e retornam a ela exatamente no lugar desejado reduzindo assim substancialmente o tempo da viagem. Paradoxalmente, enquanto o espaço se estende ao globo inteiro o tempo se restringe sobre o presente.
Hoje o ritmo do tempo das pessoas é ditado não tanto por suas opções livres e com base em seus valores. O ritmo de trabalho, principalmente das sociedades mais industrializadas, não permite que as pessoas organizem seu tempo, mas devem submeter-se a jornadas frenéticas e cansativas. Isso acaba por reduzir também a qualidade do tempo fora do trabalho que muitas vezes se reduz ao “consumo” de informações e imagens na televisão ou internet ou então, em atividades de lazer como festas, consumo de álcool e até mesmo droga. Além disso, o tempo considerado bom é aquele em que se pode consumir, e o tempo ruim é o tempo do trabalho (visto como um mal necessário para ter acesso aos bens de consumo) ou então não ter nada pra fazer.
A partir disso podemos perceber que as pessoas vivem um cotidiano privado de sentido. O dia-a-dia do trabalho não é visto como um espaço de realização e como uma contribuição para o melhoramento do mundo. Vive-se a espera de um final de semana para extravasar todas as tensões produzidas não somente pela exigência do cotidiano, mas exatamente porque nele não se percebe o ser real valor que é o de realizar a pessoa como um projeto na história.
O apego exagerado ao presente se expressa na absolutização da máxima de “viver cada instante e cada dia como se fosse o último.” É a idéia muito presente nos jovens hodiernos de aproveitar ao máximo o que cada instante pode oferecer de prazeroso porque o “amanhã nunca se sabe.” O futuro lhe é apresentado como uma ameaça que provém da insegurança, da violência, da falta de empregos. Portanto, não resta alternativa que não desfrutar o presente com tudo que ele possa oferecer sem se preocupar com o passado e muito menos com o futuro.
No campo da eticidade o império do presente apresenta graves conseqüências que compromete sobretudo a subsistência das gerações vindouras. Exatamente porque o homem moderno não se sente responsável pela herança que deixará aos futuros habitantes da casa comum, a Terra, da qual todos são inquilinos e não donos. O ser humano comporta-se como um meteoro rasante que pode destruir vastas extensões de natureza. A missão do ser humano é ser o jardineiro do Éden, que cuida, que faz crescer e protege. Criar essa sensibilidade de ser o “cuidador” do universo e de si mesmo se constitui em um dos maiores desafios de todo e qualquer projeto educativo e pastoral.
[1] FRASER J. T., Il tempo una presenza sconosciuta, 17.
[2] POLLO Mario, Animazione Culturale, 37.
[3] FRASER J. T., Il tempo una presenza sconosciuta, 187
[4] POLLO Mario, Animazione Culturale, 37.
[5] JEDLOWSKI Paolo, Un giorno dopo l’altro: la vita quotidiana fra esperienza e routine, Bologna, Il Mulino, 2005, 68.
[6] MEYROWITZ Joshua, Oltre il senso del luogo: come i media elettronici influenzano il comportamento sociale, Baskerville, Bologna, 1995, 93
[7] AUGÈ Marc, Nonluoghi. Introduzione a uma antropologia della surmodernità. Eléuthera, Milano 1996, 32 e 33
[8] Ivi, 33
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2 comentários:
Pois é, dá medo de ler este post já pelo tamanho to troço!
No mais, tudo de bom aí... e faltam 6 semanas para meu retorno a terras tupiniquins...
Moa, vê só onde vim parar... Ainda atualiza o blog? Abraços.
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